O machismo ainda é sustentado, infelizmente, por uma considerável parcela de mulheres, por causa de sua acomodação subserviente que alimenta as armadilhas machistas, como afirma aqui a educadora Lucineide Nobre.
Por outro lado, frisa, "há um movimento crescente de homens e mulheres que, pela via da consciência, estão se emancipando dos velhos condicionamentos, restaurando a dinâmica da inteireza do ser e despertando para o senso de equanimidade. Essa é a trajetória da sabedoria para integrarmos os paradoxos que compõem a totalidade".
Não tem outra.
Precisamos aprender a honrar a dimensão da alma. Nas profundas e urgentes questões do Feminino e Masculino, eu, tu, eles e elas somos parte do problema e da solução.
Somos naturalmente gregários e seres de desejo. Nosso desejo primordial de amar e ser amado é também o desejo de expressão e reconhecimento; é a liberdade e a legitimidade de ser quem somos, independentemente de gênero.
Aprendi através do legado de Marija Gimbutas, uma estudiosa da civilização antiga, pesquisadora em importantes sítios arqueológicos e professora de Arqueologia na Universidade da Califórnia no século XX, que no período neolítico as comunidades estabelecidas no leste europeu honraram essa liberdade e legitimidade inerente ao ser humano, em suas relações de gênero e comunitárias. As mulheres amavam livremente e vivenciavam plenamente a sexualidade, as crianças eram consideradas por toda a comunidade, e a convivência entre o masculino e o feminino constituía uma saudável parceria.
Assim, podemos apreender que esse nosso desejo primordial não é uma utopia, mas uma pragmatopia, ou melhor, um desejo realizável.
Com as invasões bárbaras ocorridas há mais de cinco milênios e a completa inversão nos costumes, o sistema patriarcal passou a dominar o tecido social e aviltou esse desejo básico de expressão e reconhecimento, ao estabelecer a supremacia masculina e a submissão condicionada do gênero feminino.
Tal imposição foi reforçada pelas várias religiões sob a égide soberana de um deus-masculino, e ainda por um conjunto de mitos configurados de modo a ratificar essa associação da divindade absoluta ao gênero masculino, e a desprezar ou vulgarizar o sagrado feminino. Inevitavelmente, isso foi impregnando o inconsciente pessoal, coletivo e transgeracional, ficando fortemente impresso em nossa memória psíquica.
Considerando que a força dos mitos atua como um dos sustentáculos de uma cultura, é importante que nós, especialmente as mulheres, estejamos bem atentas aos mitos que estamos atualizando, pois um mito é atualizado cada vez que ele é evocado e referenciado.
É útil lembrarmos que os mitos romanos e, sobretudo, os gregos, reforçam o apogeu da civilização patriarcal no ocidente, na qual a mulher é menosprezada; no seu panteão estão incluídas várias deusas que permanecem sendo freqüentemente atualizadas nos movimentos focalizados por e para mulheres. Na minha percepção, aí ocorre uma espécie de auto-sabotagem, uma vez que as deusas gregas exaltam a fragmentação dos atributos divinos do feminino e o reducionismo do conjunto de emanações da "Alter Mater"- o arquétipo da Deusa. E o feminino fragmentado, desprovido de inteireza, torna-se mais vulnerável aos predadores internos e externos. Além disso, as deidades do panteão grego estão submetidas ao todo-poderoso deus Zeus.
Há aproximadamente meio século, quando algumas mulheres do movimento feminino de vanguarda ousaram protestar, reivindicando a dignidade subtraída, foram (e ainda são) ridicularizadas, não apenas pelos homens, mas também por um contingente feminino ajustado a essa convivência permeada por condicionamentos limitantes e fixada na superficialidade existencial.
Hoje, em plena pós-modernidade, o machismo ainda é sustentado por uma considerável parcela de homens e mulheres, seja pela frágil escuta e miopia interior, ou pela acomodação feminina subserviente que alimenta as armadilhas machistas; enfim, por imaturidade, desconhecimento de si mesmo, até a mera repetição de hábitos depreciativos.
Por outro lado, há um movimento crescente de homens e mulheres que, pela via da consciência, estão se emancipando dos velhos condicionamentos, libertando-se da normose (a patologia das normas predatórias), restaurando a dinâmica da inteireza do ser e despertando para o senso de equanimidade. Essa é a trajetória da sabedoria para integrarmos os paradoxos que compõem a totalidade.
Cultivar relacionamentos saudáveis requer cuidado constante com o terceiro incluído: o espaço da relação entre duas alteridades - um espaço limpo, harmonizado (sem projeções ou ruídos), aberto à possibilidade de Ser. Ser é a consciência do vir-a-ser. E a alteridade de cada ser é sagrada. Trata-se de uma relação acima das cobranças, das expectativas e carências, estas próprias da imaturidade; um relacionamento onde cada parceiro manifesta sua responsabilidade enquanto individuo (um ser não dividido) e não busca ser completado pelo outro.
Esse movimento requer sinceridade com a própria alma, leveza, desapego, habilidade para honrar o livre arbítrio, inclusive em relação aos próprios sentimentos, e inclui a orientação dos desejos na guiança do eu superior.
A lucidez poética de Khalil Gibran pode ser uma sugestão preciosa a ser introduzida no campo das nossas relações:
"(...) Que haja espaço na vossa relação,
e que os ventos do céu dancem entre vós.
Amai-vos um ao outro,
mas evitai de transformar o amor em prisão.
Deixai que ele seja como um mar
em movimento entre as praias de vossas almas.
Cada um encha a taça do outro,
mas evitai de beber em uma só taça.
Compartilhai vosso pão,
mas evitai de comer do mesmo pedaço.
Cantai, dançai juntos, sede alegres,
mas deixai cada um de vós estar sozinho,
assim como as cordas da lira são separadas,
e no entanto vibram na mesma harmonia.
Dai vossos corações,
mas não o confieis à guarda um do outro,
pois somente a mão da vida
pode conter vossos corações.
E viveis juntos,
mas não permaneceis perto em demasia,
pois os pilares do templo
são erguidos à distância uns dos outros.
O carvalho e o cipreste só conseguem crescer
se não fizerem sombra um ao outro."
e que os ventos do céu dancem entre vós.
Amai-vos um ao outro,
mas evitai de transformar o amor em prisão.
Deixai que ele seja como um mar
em movimento entre as praias de vossas almas.
Cada um encha a taça do outro,
mas evitai de beber em uma só taça.
Compartilhai vosso pão,
mas evitai de comer do mesmo pedaço.
Cantai, dançai juntos, sede alegres,
mas deixai cada um de vós estar sozinho,
assim como as cordas da lira são separadas,
e no entanto vibram na mesma harmonia.
Dai vossos corações,
mas não o confieis à guarda um do outro,
pois somente a mão da vida
pode conter vossos corações.
E viveis juntos,
mas não permaneceis perto em demasia,
pois os pilares do templo
são erguidos à distância uns dos outros.
O carvalho e o cipreste só conseguem crescer
se não fizerem sombra um ao outro."
Lucineide Nobre
Educadora, integrante do conselho gestor da Unipaz-CE, facilitadora d'A Arte de Viver em Paz no Programa Beija-Flor da Unipaz, atuante em consultoria educacional na abordagem biocêntrica e holística
lucineidenobre@yahoo.com.br
FORTALEZA/CE
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